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laboratório

experimentos e reflexões para a poesia da escrita e do olhar livre 

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Das ruínas, o risco


A obra "Entre os olhos, o deserto" de Miguel Rio Branco sob o olhar da alegoria de Walter Benjamin

Nada fica de nada. Nada somos

Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos

Da irrespirável treva que nos pese

Da húmida terra imposta,

Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas -

Tudo tem cova sua. Se nós, carnes

A que um íntimo sol dá sangue, temos

Poente, porque não elas?

Somos contos contando contos, nada.

Nada fica de nada. Nada somos.(1)

Ricardo Reis



O que nós fizemos de nós? Irresistivelmente seduzidos pelo progresso, os homens o tomaram como o objetivo da história sem se ater às ruínas que restariam nesse mundo. Uma paisagem estéril, espaços vazios de significado, desertos, infertilidade, vidros quebrados, partes, fragmentos, cicatrizes, descontinuidades, olhos marcados pela esterilidade do mundo, a infertilidade de vidas sacrificadas, o selvagem, o medo, o consumo desenfreado, a morte, os vestígios de vidas, a flor caída no chão, as rachaduras nas paredes, a oxidação, a caveira, a decadência, a corrosão do mundo. Essas poderiam ser algumas palavras para descrever a instalação Entre os olhos, o deserto (1997), de Miguel Rio Branco, cujo teor estético encontra força no sentido alegórico pensado por Walter Benjamin em “A origem do Drama trágico alemão”. A despeito da distância abissal quanto à historicidade e à estética entre o Barroco e o Contemporâneo, a presença alegórica é válida para além do estudo sobre o século XVII e constitui-se como “uma dessas ideias-origem que pode emergir em outros contextos históricos”.


Diferentemente do símbolo, a alegoria como a própria terminologia o diz allo agorien, significa dizer outro. A obra alegórica se manifesta pela ambiguidade, pela multiplicidade de sentidos, desrealizando o todo harmônico e se afirmando por uma união de fragmentos sem intenção de restaurar o todo. Alcançado o entendimento da ideia de alegoria, podemos pensar sobre Entre os olhos, o deserto, cuja obra é edificada a partir de diferentes linguagens que se estabelecem em fragmentos. Longe de ser totalizante, como assinala o crítico de arte Paulo Herkenhoff, Rio Branco trabalha com uma estética da multiplicidade. Nessa direção, múltiplos pedaços se dão em fusões de fotografias projetadas num tríptico em fluxo contínuo, acompanhada por trilha sonora e objetos dispostos ao chão que rompem com as estruturas harmônicas. Soma-se a isso o conteúdo das imagens que trata de fissuras, esterilidades, cicatrizes que atentam para rastros de destruição, fortalecendo o caráter de arruinamento e de transformação provocados pelo tempo e pela história.


Para Benjamin, quanto maior o campo de significação da obra de arte mais ela está condenada à morte. A “mortificação da obra” é entendida como implantação do saber no que está morto. Uma vez arrancada do contexto histórico e das intenções do artista, a obra alegórica permite trazer a essência crítica para o seu “acabamento”. É nessa força crítica que residiria a beleza da alegoria.


Diante daquilo que está em processo de deterioração, o sentimento caro ao alegórico é a melancolia. A melancolia é vista por certas correntes da filosofia como potência à produção intelectual e artística. Benjamin explica: “as alegorias envelhecem porque da sua essência faz parte o desconcertante. Se um objeto, sob o olhar da melancolia se torna alegórico, se ela lhe sorve a vida e ele continua a existir como objeto morto, mas seguro para toda a eternidade”. Nessa afirmação se situa o objeto de arte alegórico, que no paradoxo entre vida e morte continua a despertar significados que não se fecham em si mesmo.

A obra “Entre os olhos, o deserto” está montada no pavilhão dedicado ao artista no Instituto Inhotim, em Minas Gerais, mas data de 1997, realizada pela primeira vez no In-Site, exposição bienal na Casa de la Cultura de Tijuana, no México. A instalação áudio-visual é composta por cerca de 500 imagens projetadas num tríptico, aleatoriamente. Junto à obra, estão objetos de metal e vigas de construção dispostos no chão, abaixo da projeção. A trilha sonora soma o conjunto, composta por Gymnopédie n.1, de Erik Satie (1866-1925) mixada com sons dissonantes e canções populares americanas em looping.

O trabalho de arte analisado transborda as fronteiras da fotografia quando o artista insere diferentes linguagens para comunicar. São diferentes meios que compõem a sua poesia visual: fotografias, montagem, objetos, música, projeção, e cenas (imagens). Uma pluralidade de linguagens. E tudo isso pensamos numa narrativa híbrida e fragmentada que sai da moldura e cria um outro espaço–tempo. Tomado de referências de Hélio Oiticica, Clarice Lispector, e de João Cabral de Melo Neto, por exemplo, Herkenhoff fala do trabalho poético de Miguel Rio Branco em Notes on the tides:


(...) iludir lógicas, suturar o múltiplo com cortes dilacerantes, costurar significações, instalar a devolução da luz ao ar, perverter aparências, atiçar traições aos significados, revelar ethos, embaralhar e vir-a-ser, deformar fotogenias, contaminar purezas, contrair o progresso da arte, frustrar a sublimação, gemer a poética, deixar rastros de sombra, acordar as latências óticas, somar por subtração, acariciar à distância no tempo, arranhar a representação (...) fixar ambivalências, desalojar certezas, potencializar o caos,transparecer no híbrido, não dizer tudo (...).

A própria estrutura textual, chamada de jorro crítico, em que Herkenhoff trata da obra de Miguel Rio Branco, traz a ideia de alegoria pensada por Walter Benjamin em “A origem do drama barroco alemão”. O texto não tem direção, nem mesmo um indício de início e fim, sem articulação causal, argumentativa, lógica. Não almeja chegar a qualquer lugar, uma possível leitura de nosso progresso desenfreado sem “telos”. Assim como em Herkenhoff, a arbitrariedade é parte da obra Entre os olhos, o deserto. Miguel Rio Branco desconstrói para construir o que jaz em ruínas. Não há relação histórico-documental, é um fluxo contínuo de imagens-pulsões:

Tudo surge como um olhar irregulado, que se desdobra sem margens, limites e contornos, resistindo à ideia de totalização de um imaginário ou de redução da produção ao estilo pessoal ou agenda iconológica. Irredutível ao cânon dos meios técnicos, a padrões formais e aos sintomas das psicopatologias sociais, a obra de Miguel Rio Branco é um fluxo caudaloso e denso.

A força alegórica se estabelece na progressão sequencial de momentos e, dessa forma, assim também se inscreve na obra composta das imagens projetadas em tríptico que se fundem e se alternam em diferentes velocidades. Em Pele do Tempo, Paulo Sérgio Duarte comenta a obra:

Nessa longa exposição de quase 500 imagens, o acaso fica reservado à correspondência entre som e imagens, propositadamente não sincronizados. Cada encontro sincrônico de três imagens, cada fade, foi construído, um a um, como versos e como obra do destino nesse longo poema de fotos. Acaso e determinação, e, de novo, estamos diante de uma arte do desencontro, seduzidos pelo encanto das dissonâncias visuais. Como Deus, a harmonia está morta.

A estrutura de acaso, de ultrapassar limites e multiplicar a ideia distante de sua origem inaugural fragmenta o todo, desrealiza a ideia de harmonia e de beleza. Nessas atribuições está o gesto crítico do alegorista, segundo a teoria benjaminiana, de matar o objeto e, assim, “destitui-lhe de um sentido para depois tê-lo como material inerte a ser ‘reanimado’ pela sua construção alegórica”, como afirma Katia Muricy. Quando Miguel Rio Branco associa diversas imagens de seu acervo, fotografadas em diferentes tempos históricos, o artista as destituiu de seus significados originais para buscar novos sentidos, novas linguagens e transfigurá-las em outro contexto. O fragmento, visto por Benjamin, como a “mais nobre criação barroca”, entra em consonância tanto no conteúdo quanto na forma de Entre os olhos, o deserto. Miguel Rio Branco apega-se à marcas, às cicatrizes dos corpos , às fraturas da terra que conota perecimento, temporalidade e morte, isso é, o fragmento enquanto conteúdo. Na forma, o fragmento se estabelece quando as imagens já se apresentam num tríptico, em três diferentes telas; na montagem das imagens; na trilha sonora, com diferentes trechos de músicas; nos restos de construção no chão. Assim, completa-se o jogo alegórico que inunda o observador de fragmentos e significados dilacerantes. Paulo Sérgio Duarte confirma a seguir:

Dado um mundo exterior dilacerado, coube à poética encontrar a força de reuni-lo numa totalidade que não mascara sua origem fragmentada nem recalca a pluralidade de significados contingentes. Essa lição da obra de Miguel Rio Branco tem longo alcance para a arte contemporânea e ultrapassa em muito a questão dos temas tomados isoladamente.

Esta liberdade estética da obra contemporânea que atenta para novos sentidos, passado por toda a conquista do que representou as vanguardas modernistas e a Pop art, segundo Danto, é sentida intrinsicamente na estética de Rio Branco. O novo sentido que Miguel Rio Branco dá à fotografia é apresentá-la contaminada de outras linguagens como na instalação visual. Seguindo a linha de pensamento de Benjamin e de Danto, podemos dizer que a partir do objeto morto, ou seja, da caducidade da imagem representativa, Miguel Rio Branco a transfigura. Isso se dá por fotografar o “infotografável” ou pelo processo de montagem numa sequência de projeção onde as fotografias não têm uma relação a priori.


Sobre a montagem, Muricy se debruça no pensamento de Bürger que por sua vez recorreu à teoria da alegoria: “compete mesmo ao artista de vanguarda arrancá-lo de um “organismo”, de uma “vitalidade” qualquer e, violentando a forma em que se inscrevia a sua naturalidade, reduzí-lo à inércia morta de material.” Com esta ideia pensamos que a fotografia é a matéria morta para Rio Branco, que ganha nova dimensão na montagem. Bürger, entretanto, difere dois tipos de montagem: a técnica, que seria a do meio operatório do cinema e a estética que seria do Cubismo, por exemplo, através de colagens. A diferença entre as duas é que no cinema quer criar a ilusão naturalista de continuidade, enquanto a da poética é destruir os meios de representação da arte tal qual a realidade. E aí está o ato revolucionário, quando por meio da montagem afasta do artista o poder absoluto sobre a elaboração total da obra de arte. “Assim se destrói a unidade da obra como produto absoluto da subjetividade do artista”. Rio Branco trabalha com ambas categorias da montagem: a técnica, tanto para a projeção imagética e para a trilha sonora, quanto estética, para aplicação dos objetos no chão. Porém aí se encontra uma perspectiva diferente da de Bürger, pois longe de “criar a ilusão naturalista de continuidade”, a técnica em Rio Branco está em fissurar a ordem se afirmando por sua potência estética.


E ao considerar a montagem como atividade alegórica, outro ponto soma à discussão em Entre os olhos, o deserto: a interpretação. “O artista alegorista é intérprete e é esta condição que explica a sua característica ontológica — a melancolia.” Entregue à meditação profunda, o artista alegórico interpreta o que foi dilacerado do todo de sua compreensão de mundo. E o que uniria o artista de vanguarda ao artista do drama trágico alemão na concepção de Bürger seria o “fervor ao singular”, a devoção ao fragmento.


Em Entre os olhos, o deserto, a potência está nas partes, nos detalhes das cicatrizes que revelam o cenário de entropia social. O crítico Paulo Herkenhoff explica que a arte de Miguel Rio Branco está voltada a um humanismo ácido e feroz, “ao estabelecer na matéria do signo o corpo vilipendiado socialmente para nos dizer nossa própria humanidade”. Herkenhoff recorre à filosofia de Nietzsche para falar da obra de Rio Branco, “com todo enfrentamento que temos que ter, ao nos confrontarmos com as pulsões de vida e pulsões de morte. É isso que nos torna sujeito (...) do olhar.” Sobre a relação do homem e tempo, Herkenhoff diz:

O humanismo é algo intempestivo. Há um momento que o humanismo não depende nem do passado, nem do futuro, mas é. Existe aqui, seguramente, um olho nietzschiano. Esse olho fala dessa presença, não de uma representação, mas em tornar algo tão presente que pulse por nós, que nosso olho pulse e se encontre ali.

As fotografias que compôem a obra são projetadas em três partes, que pode conotar a aparência de uma janela para o mundo onde, nos extremos, estão os olhos de pessoas que assistem o deserto, num olhar contemplativo. O submundo, jorrado nas imagens com suas cicatrizes, está entre os homens que reconhecem a incompletude das formas de vidas. Embora trate de fissuras, a obra absorve um lirismo denso e profundo. E o estado afetivo que emerge é a melancolia. A trilha de Erick Satie, misturada a sons diversos, reforça esse caráter melancólico. Como o próprio Miguel Rio Branco diz: “a música tem a força de tocar mais diretamente na emoção”, por ser característica da abstração da matéria da qual o som é feito.


A consciência do fim permeia toda a obra, embora o desejo de eternidade e estabilidade ainda é uma grande questão presente nos discursos da sociedade ocidental. Podemos fazer um paralelo para enriquecer o pensamento ao recorrer à experiência da morte na poesia de Rilke que a vê como potência de vida:

Quem não admite o pavoroso da vida, quem não a saúda com gritos de alegria, esse jamais entrará na posse das potências indizíveis de nossa vida, permanece à margem, não terá sido, quando chega o momento da decisão, nem um vivo nem um morto.

A melancolia é própria daquele que se perdeu na relação com mundo e medita sobre o que jaz em ruínas, na fratura da existência onde para terra tudo volta. Mas se entendermos como Rilke o fez, todo nascimento é uma morte, de certa forma, morremos aos poucos, tudo tem cova sua. E aí entra em consonância com os olhos de Miguel Rio Branco, atento e sem medo de revelar a poesia desse reino o qual a sociedade ocidental repudia.


Se “às vezes as imagens morrem dentro de nós e outras vezes morremos dentro delas”, estamos diante do jogo em estar no mundo. David Levi Strauss tece o comentário no livro Entre os olhos, o deserto, a partir do conceito que somos “criaturas do ver”, onde as imagens garantem nossa existência, nossa relação com o mundo.

Sem elas morreríamos, deixaríamos de ser

Pois vemos para viver e vivemos para ver

Somos todos, no íntimo, criaturas do ver

Imagens surgem à nossa frente, mas as vemos dentro do ser.

A partir de Herkenhoff, será a morte o “infotografável” na poética de Rio Branco? Encarada como bruta, que os olhos humanos querem fechar-se para não ver, Miguel Rio Branco a reanima em sua arte. E para Benjamin, a beleza de uma obra alegórica está em trazer esse componente morto como “objeto de saber” a despertar verdades e sentidos diversos de sua intenção e de sua historicidade inaugural. Nesse espírito, ergue-se a melancolia em sua oscilação da tristeza profunda e alegria eufórica, faz das ruínas, criação; do deserto, poesia; da morte, vida. A obra de Rio Branco faz “iluminar o sol negro”, isto é “trazer a melancolia não para desmontá-la, mas para trazer à luz”.


Como categoria ontológica da obra alegórica, a melancolia mostrou que é possível criar a partir do que está em ruínas. Numa tentativa de dar sentido ao que a melancolia representa para a arte, alcança-se o par de conceitos “ruínas” e “risco”. “Ruínas” enquanto leitura de processos de um tempo, de transformações de uma época e também pelos conceitos que o termo possibilita para a leitura estética da obra de arte contemporânea com sua fragmentação e contaminação de linguagens que desarmoniza o todo. E “risco” como potência de criação onde se insere a arte, na latência da tensão entre nascimento e morte. Para criar, fazer aparecer é preciso risco no duplo sentido do termo: em se entregar ao desconhecido sabendo que possa haver negação, não concretização, na potência entre vida e morte; e riscar, rabiscar, intervir, escrever, criar com imagens, palavras, melodias, movimentos e matéria. Riscar com presença. Riscar no tempo e no espaço. Criar. Arte. Portanto, Das ruínas, risco.


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